
Por Milena Tutumi
Em novembro, quando se completam os 180 dias da regulamentação da RDC 786, de maio de 2023, os laboratórios clínicos, laboratórios de anatomia patológica e de outros serviços que executam as atividades relacionadas aos Exames de Análises Clínicas (EAC) deverão ser fiscalizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), frente aos devidos requisitos técnico-sanitários para o funcionamento desses estabelecimentos.
Entre as alterações, algumas vão exigir mais esforços dos laboratórios e outras, têm gerado dúvidas e preocupações. Os impactos na saúde financeira dos laboratórios e na qualidade dos serviços são os maiores desafios a serem garantidos pelo setor.
“Alguns pontos estão mais abrangentes, como a rastreabilidade e toda a parte geral da qualidade. Isso precisava ser revisto e necessitava da implementação de parâmetros novos de avaliação”, avalia Ana Cotta, Diretora e proprietária do mineiro Neolab. O Gestor da Qualidade do Laboratório Kosop, Juan Diego Gasso, concorda: “Essas mudanças chegam em momento oportuno, vêm para fechar as lacunas onde a norma era silente, principalmente na questão da qualidade. Será um desafio significativo para os laboratórios”.
O valor de uma acreditação
Tanto o Neolab quanto o Kosop fazem parte de programas de qualidade. Para ambos, esse quesito tem sido um grande facilitador de adequação à nova RDC. “A exigência da realização de controle de qualidade em todas as amostras será um desafio, pois sabemos que apenas um terço dos laboratórios operantes no país fazem controle de qualidade externo”, analisa Gasso.

Ana Cotta comenta que, por serem acreditados pelo Programa de Acreditação de Laboratórios Clínicos (PALC), o Neolab se mantém sempre atualizado com as demandas da vigilância sanitária. “Neste momento, o trabalho mais intenso de adequação à norma está relacionado à avaliação dos fornecedores, que exigirá mais rigor quanto às exigências nas documentações dos contratos”, pontua.
No caso do Laboratório Kosop, que recentemente reestruturou toda a área de gestão da qualidade, o foco das adequações à RDC está na rastreabilidade da logística: “Implementamos sistemas de rastreamento nas motos dos profissionais de entrega e também sistemas para o controle de temperatura, que agora é feito durante todo o percurso de transporte das amostras”, informa Juan Gasso.
Outro ponto destacado pelo especialista são as modificações feitas no acondicionamento das amostras, que agora são mantidas em geladeiras exclusivas, separadas dos reagentes. De acordo com ele, o trabalho de revisão das normas está sendo feito desde setembro de 2022, tanto a parte documental como a prática.
Apesar dos altos custos gerados pelas melhorias, Gasso entende que isso é necessário: “Os laboratórios que estão dentro da norma vão sobreviver. A dificuldade chegará para os demais, principalmente com o aumento da competitividade do mercado, resultante da abertura de outros pontos de testagem”.
O Neolab por enquanto não teve incremento financeiro com as adequações da nova RDC, e a Ana acredita que os laboratórios sem uma gestão da qualidade bem estabelecida na rotina, terão dificuldades para implementar as adequações no tempo exigido. E também questiona se os estabelecimentos serão fiscalizados do mesmo modo que aqueles que já contam com uma gestão da qualidade fortalecida.
Para ela, o impacto realmente vai acontecer frente aos novos serviços que estão entrando na fiscalização: “Com essa abertura de novos serviços às farmácias e aos consultórios, será preciso acompanhar de perto para uma avaliação mais abrangente. A partir das próximas fiscalizações é que perceberemos como está acontecendo essa interação”.
Fiscalização para todos

A abertura desses outros pontos de testagem e a ampliação dos serviços oferecidos têm gerado mais angústia aos profissionais dos laboratórios de diagnóstico, que depositam as esperanças em uma fiscalização de qualidade, criteriosa e igualitária: “Será que o entendimento dessa nova RDC vai ser linear? A Resolução está abordando pontos importantes, como rastreabilidade e segurança do paciente. Espero que todas as partes tenham os mesmos entendimentos sobre o que está descrito”, pondera a Diretora do Neolab.
Já Juan Gasso, destaca que o real valor dos laboratórios deve vir à tona: “Com a ampliação extensa do leque de testes, o receio é saber se está sendo entregue ao paciente o devido cuidado. Essa RDC servirá para mostrar o grande serviço que é feito dentro dos laboratórios”.
Exames laboratoriais x testes rápidos
Determinar o papel e o valor de cada produto é fundamental, já que todos buscam a sua fatia de mercado. Ana Cotta defende que as pessoas precisam ter consciência que o teste rápido não é um definidor de diagnóstico como os exames feitos nos laboratórios: “São para um evento pontual, para ajudar a população na necessidade de um encaminhamento mais rápido. Quero acreditar que a assistência farmacêutica terá o treinamento necessário para orientar e conduzir o cliente de acordo com as necessidades e urgências individuais”, acrescenta.
Por outro lado, o gestor do Laboratório Kosop questiona quais serão os critérios de fiscalização e como serão feitos os cadastros e notificações desses testes nos novos ambientes. Ele observa que a RDC 786 ainda tem muitas arestas, mas reconhece que é um primeiro passo para a recomendação total dos serviços de point of care e para a melhora do acesso da população à saúde.
Impactos financeiros
Com a ampliação de estabelecimentos oferecendo novos testes, espera-se um aumento da concorrência e possíveis perdas financeiras. Juan Gasso pontua que os laboratórios têm altos custos com as exigências do controle de qualidade externo, gerando aumento das validações e a necessidade de implementação de avançadas tecnologias.
Já a Diretora do Neolab prevê um impacto financeiro, especialmente pelo porte de seu laboratório e pelas grandes redes de farmácia estarem atuando com mais afinco, mas, ainda assim, conseguiu enxergar uma nova oportunidade em meio a tantas mudanças.
Novas oportunidades
O Neolab é um laboratório diferenciado, que não possui postos de coleta e atua exclusivamente com coleta domiciliar. Com a inclusão dos consultórios como ambientes de testagem, percebeu a oportunidade de parceria. Embasado pela nova RDC, o laboratório oferecerá toda a logística adequada para atender esses estabelecimentos com o transporte das amostras.
O que diz a SBPC/ML

A tarefa de implementar uma nova resolução depois de 18 anos é um assunto tão árduo e complexo quanto necessário aos setores envolvidos e à sociedade. Como avalia Fábio Vasconcellos Brazão, presidente da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC/ML), em entrevista exclusiva ao Portal LabNetwork, “a comunidade laboratorial brasileira, de modo geral, ansiava por essa revisão”.
Qual a opinião da Sociedade em relação à RDC que vem para substituir a RDC 302/2005? É um momento relevante para essa mudança?
SBPC/ML – A normativa, que foi publicada em outubro de 2005, representou um marco regulatório importante na história do funcionamento e regulamentação dos laboratórios clínicos, uma vez que trazia o detalhamento sobre as responsabilidades técnicas e organizacionais dos laboratórios, sobre equipamentos, qualidade dos exames, descartes de resíduos etc. A sua revisão, porém, era ansiada pela comunidade laboratorial brasileira. Isto porque a RDC 302 se mostrava desatualizada em relação a muitas metodologias que avançaram após a sua publicação. O grande desafio agora será exercer a rígida fiscalização necessária para assegurar o respeito à nova normativa após implementada.
Como a SBPC/ML atuou na construção dessa RDC 786/2023?
SBPC/ML – A SBPC/ML, em conjunto com outras entidades, vem debatendo o tema com a Anvisa desde a primeira consulta pública sobre essa pauta, tendo trabalhado na análise das contribuições recebidas e na elaboração da nova versão da norma. A SBPC/ML teve interlocução direta com a Anvisa. O objetivo foi contribuir com a nova norma no sentido de demonstrar os aspectos de segurança do paciente e garantia de qualidade na realização dos exames laboratoriais.
Quais as alterações mais significativas?
SBPC/ML – A nova RDC traz um detalhamento bem maior de exigências que já estavam presentes na RDC 302, portanto é fundamental que cada serviço faça um estudo atento do texto para compreensão e crítica pertinente sobre adequações que sejam necessárias. Pode-se citar dentre as alterações mais significativas a classificação dos serviços que executam exames de análises clínicas, em tipo I, II e III – sendo o laboratório clínico um serviço do tipo III – e as atribuições e limitações de cada um deles, além disso a inclusão dos laboratórios de anatomia patológica e a caracterização e regulamentação da central de distribuição de amostras.
Qual o impacto esperado nos laboratórios? Positivos e negativos
SBPC/ML – Positivos: Os exames laboratoriais sempre foram feitos em laboratórios por conta de toda a estrutura que há por trás, com tecnologia, processos e pessoas preparados para atender as atividades inerentes a todas as fases de um exame laboratorial, ou seja, pré-analítica, analítica e pós-analítica. Qualidade do exame e segurança dos pacientes são os pré-requisitos básicos que devem ser observados e os laboratórios devem oferecer essas garantias. A RDC reafirma e amplia exigências de garantia de qualidade e gestão de indicadores, práticas anteriormente já exigidas por programas de acreditação, como o PALC. Os laboratórios no Brasil também serão ainda mais incentivados a passar pelo processo de Acreditação Laboratorial que confere mais segurança. O objetivo central se demonstra em garantir a qualidade dos serviços prestados pelos laboratórios clínicos, contribuindo para a melhoria da saúde e bem-estar dos pacientes. Negativos: A caracterização do serviço tipo I como passível de realização de testes rápidos, mesmo que com as restrições impostas, causa preocupação com relação a adequada informação da população sobre a conotação de triagem deste tipo de teste, neste ambiente e de quanto ela está apta a decidir com base nas vantagens e limitações. Além disso, a qualidade dos testes que serão disponibilizados neste cenário e como ela será avaliada é um ponto de atenção. Ratificamos o importante avanço à ampliação da oferta de serviços oferecidos à população brasileira e à assistência à saúde, com a garantia de qualidade dos exames de análises clínicas no país, para atender a evolução do setor de diagnósticos. Manteremos o propósito de educar tanto profissionais de saúde quanto a população leiga sobre o uso adequado dos exames laboratoriais.
É estimado que os laboratórios tenham custos de adaptações? Quais?
SBPC/ML – O cenário é variável a depender do laboratório. Visto que as exigências da RDC para serviços do tipo III estão bastante alinhadas a normas de acreditação, laboratórios acreditados tendem a ter menor impacto na adaptação. Para laboratórios que não trabalhavam com acreditação laboratorial, as mudanças podem ser mais impactantes.
O prazo para adequação dos laboratórios é viável?
SBPC/ML – O prazo para adequação dos laboratórios foi de 180 dias. Existem ainda muitas dúvidas sobre a interpretação de alguns aspectos da norma e a Anvisa tem se mostrado aberta a debates, discussões e esclarecimentos. É fundamental que os laboratórios priorizem o entendimento da norma e a construção de planos de ação para adequação, visto que existem novas exigências que demandam ajustes de sistemas, processos e estrutura.